PREFÁCIO
Traduzindo do francez o capitulo em que Jean Crespin, na sua obra- Histoire des Martyres, tomo II, pags. 448-465 e 506-519, se occupa da perseguição dos Calvinistas no Brasil, fazemol-o por desejarmos concorrer, de algum modo, á commemoração que, aos 31 de outubro do corrente anno, o Catholicismo Evangelico fará do 4.° centenario da Reforma, bem assim por ser geralmente desconhecida a historia dos primeiros fieis que, a 9 de fevereiro de 1558, soffreram o baptismo de sangue em Coligny, hoje fortaleza de Villegaignon, na bahia de Guanabara - Rio de Janeiro.

Das annotações feitas a esse capitulo por Matthieu Lelièvre, na edição de 1887, vertêmos as que nos pareceram de real valor e addicionámos outras sobre pontos que cumpria elucidar.

O dr. Erasmo Braga, membro da Academia de Letras de S. Paulo e deão do Seminário Theologico Presbyteriano em Campinas, havendJesus Christo, alçando em tantos logares, na actual Dispensação da Graça, a flammula sacrosanta de seu Evangelho, revela-se, mesmo, aos povos desconhecidos e barbaros e chama a si, por este meio, todos os habitantes do mundo, antes de executar sobre elles o ultimo julgamento. Porém os falsos christãos e, sobretudo, os apostatas, pela sua ingratidão e maldade crescentes, procuram impedir, mais do que os proprios tyrannos, a difusão da verdade, como resaltará da narrativa que vamos fazer e que nos deve estimular a seguirmos o Evangelho, embora com o sacrifício de nossas commodidades; a supportarmos, resignados, a fome, a sede, a nudez e todas as tripulações que Deus permittir nos sobrevenham para exercício, prova e aperfeiçoamento de nossa paciencia.

Como preparo indispensavel á boa intelligencia da historia dos primeiros crentes evangelicos que, por causa da sua fé intemerata na doutrina do Filho de Deus, regaram o solo brasileiro com o seu sangue, não nos occuparemos já de nosso principal assumpto e, sim, de seus preliminares – o inicio e o motivo da existencia de uma Egreja Reformada, segundo as Santas Escripturas, em paragem tão distante e apartada das nações.

A rememoração de tão notaveis acontecimentos, desenrolados por esse tempo, deve mover-nos a uma meditação continua sobre as maravilhas do Senhor, tanto mais quanto cremos que aquelles a quem cabe o dever de proclamal-as sentirão, no futuro, remordimentos de consciencia, si deixarem de cumpril-o ; e taes considerações, aliás, levaram uma personagem digna de toda a fé a publicar, por escripto, tudo o que vira em referencia aos factos de que nos occupamos e a quem tornaremos, por emprestimo, as palavras e a narração que se seguem (2) :

“ Posto que a verdade, por si mesma, sem qualquer artificio, prevaleça contra a mentira, e não nos seja permittido accrescentar-lhe coisa alguma, todavia, quando opprimida durante certo tempo pelo esforço maligno dos adversarios, póde ella estar como enterrada.

Mas um dia far-se-á, luz e aquillo que estivera profundamente occulto apparecerá em plena evidencia, afim de que no scenario do mundo se descubram os hypocritas e os cynicos.”

_______________________



Quanto ao fracasso da tentativa de colonização huguenote, Jean de Lery, um dos membros da expedição, deixou-nos interessantíssimo trabalho, intitulado : Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, – livro este que teve já oito edições em francez, das quaes a mais recente se deve a Paul Gaffarel, Paris, 1880, e cinco em latim. Mas esta obra, tendo apparecido pela primeira vez em 1578,é claro que da mesma não se poderia ter soccorrido Crespin para a presente noticia, que figurava já na edição de 1564. O martyrologio é a reproducção pura e simples de um pequeno volume, in-16, de 48 fls., que em parte alguma vimos mencionado, mas do qual ha um exemplar na Bibliotheca do Arsenal (H 12102), e intitula-se : Histoire des choses mémorables survenues en la terre du Brésil, partie de l’Amérique Australe, sous le gouvernement de N. de Villegaignon, depuis l’an,1555 jusqu’á l’an 1558 (1561, S I). Quem é, todavia, o autor deste escripto? Qual é essa personagem digna de fé á qual Crespin declara pertencerem as «palavras e a narração» deste capítulo de seu livro ? A hesitação não e possível sinão entre os nomes de doas testemunhas presenciaes dos factos, ambas as quaes se teem occupado delles por escripto. Um é Pierre Richier, que fôra, como ministro, enviado por Calvino ao Brasil, e que, em 1561, publicou uma Refutação ás loucas fantasias, ás execraveis blasphemias, aos erros e ás mentiras de Nicolas Durand de Villegaignon (in-16, S I, 176 fls. – Bibliotheca do Protestantismo Francez), obra seguida nesse mesmo armo de pamphletos energicos sobre o mesmo assumpto e, provavelmente, do mesmo autor. Mas um exame attento leva-nos a crer que Richier não póde ter sido o autor da narrativa reproduzida por Crespin – tamanha é a differença entre o fundo e a fórma deste relato. e a maneira peculiar por que Richier descreve os mesmos acontecimentos ; diversidade tanto mais estranhavel si elle houvesse feito duas vezes, no mesmo armo, a alludida narração. Resta-nos, pois, Jean de Lery, autor da obra acima indicada. Verdade é que, referindo, no prefacio de seu livro, as vicissitudes do respectivo manuscrito, elle não allude a esta publicação de 1561; mas, quasi no fim da obra, declara haver collaborado no Livro dos Martyres (vide adiante, no martyrio de Jean du Bourdel, a nota correspondente). Facilmente se concebe que Crespin, não podendo logo inserir a narrativa em seu Martyrologio, o qual só em 1564 appareceu, deliberou fazer da mesma uma edição distinta : e tal a origem do pequeno volume de 1561, destinado a refutar a versão que dos factos espalharam Villegaignon e os seus amigos.

_____________



Fructo e utilidade desta historia

Por esta razão, e porque seja louvavel reconduzir ao caminho direito os que delle se desviaram, urge tambem se torne conhecida a verdade quanto á tragedia de que o Brasil foi theatro ; e, para consecução satisfatória de tal objectivo, importa comecemos pelo relato de tudo o que se convencionou, de tudo o que se fez e de tudo o que occorreu. Servira isto de aviso, para que d’ora em diante não se creia facilmente em coisas sobre que se não estiver bastante! intelligenciado e para que a respeito dellas não se exerça, com precipitação, um juízo definitivo.

O exposto seria motivo sufficiente para traçar-mes esta narrativa. Duas outras razões, porém, de não menos peso e valor, dão á tarefa o caracter de indeclinavel : a grandeza do facto e a circunstancia dos logares.

Sim, onde o historiador que haja registrado que nessa terra recentemente descoberta alguem tenha sido sacrificado e morto, porque ousára espalhar, ali, o conhecimento da Palavra de Deus? Os selvagens teem assassinado e devorado alguns Portuguezes e Francezes. Mas – qual a razão? Unicamente porque as victimas, pela sua propria avareza e ambição desmesuradas, os haviam ultrajado e offendido. Todos sabem perfeitamente que os Portuguezes e mesmo os Francezes que teem estado nessas regiões jámais falaram aos selvicolas uma palavra, siquer, no concernente a Christo Jesus Senhor nosso.

E porque os tres fieis cuja morte descreveremos mais adiante foram os primeiros que, no Brasil, experimentaram o martyrio por causa do Evangelho, segue-se que seria indecoroso, importaria uma injustiça clamorosa, e de más consequencias, si deixasse-mos a sua memorial no olvido e completamente extinta entre os homens, pois que, nesse caso, o seu sangue bradaria ao Céo por vingança contra semelhante indignidade.

Taes reflexões determinaram nas testemunhas oculares dos acontecimentos que vão ser aqui narrados e por cujos mãos transitou esta compilação o forte desejo de que a mesma fosse transmittida ao leitor, afim de prevenil-o contra as calumnias (3) que obscurecessem e deturpassem a verdade sobre as causas da empreza, meios, execução, protestos, revoltas e o mais que se segue.

Disputa de Villegaignon em França

Nicolas de Villegaignon, nomeado vice-almirante em Bretanha, desaviera-se com o capitão da cidadella de Brest, principal fortaleza de todo o paiz, e isso por questões technicas da fortificação da mesma. Originou-se dahi um descontentamento e, um odio mortal entre ambos, de modo que, para se defrontarem, buscavam só o momento propicio.

O caso chegára aos ouvidos de Henrique II. Este, porém, favorecia muito mais ao capitão da cidadela do que ao vice-almirante, circunstancia que tirava a Villegaignon toda a esperança de successo na disputa. Sem embargo, pensava elle que, pelo menos, poderia arruinar ou tornar odioso o seu adversário. Mas, neste sentido, ia conseguindo pouco, pelo que começou a aborrecer-se em França, accusando-a de enorme ingratidão, visto que ao serviço delia consummira toda a sua juventude na carreira militar. Accrescentava, ainda, que, em face do resultado quasi nullo que obtivera .de seus trabalhos passados, não podia mais ali permanecer por muito tempo.

Ora, na cidade de Brest, residia então um preposto do thezoureiro da Marinha, o qual era íntimo de Villegaignon. Um dia, quando se achavam á meza, referio-se aquelle a uma viagem que fizera ás Indias Meridionaes e, alludindo ao Brasil, louvou elle extraordinariamente a sua temperatura, a belleza e a serenidade do céo, a fertilidade da terra, a abundância de viveres, as riquezas naturais e coisas outras de todo desconhecidas dos antigos.

Villegaignon sonha a fundação de uma monarchia

no Novo Mundo

A descripção agradára immenso a Villegaignon e de tal modo lhe aguçou a cobiça que elle constrangia o seu informante a repetir-lhe freqüentemente as mesmas palavras, sonhando o dominio de toda essa terra. Seu desejo de ir até lá augmentava dia a dia.

Faltavam-lhe, porém, os meios, tanto mais quanto, em deixando a França, queria fazel-o com honra e boa reputação, o que lhe acarretaria grande despesa, para a qual não estava apparelhado. De, resto, Henrique II julgaria muito mau que elle se exilasse voluntariamente entre gente a mais deshumana que existia debaixo do céo.

Entretanto, por subtis meios, esforçava-se Villegaignon por captar as sympathias daquelles que lhe podiam dar apoio efficiente para a feliz prosecução de seu projecto, aos quaes affirmava que seu vehemente desejo e mais forte empenho era procurar um sitio de repouso e tranquïllidade, onde pudesse estabelecer os perseguidos em França por causa do Evangelho; e que, havendo longamente pensado sobre o melhor logar para fugir á crueldade e tyrannia dos homens, elle se lembrára da terra do Brasil, da qual todos os navegántes se manifestavam encantados, enaltecendo a sua temperatura e a sua fertilidade, e onde se poderia commodamente viver.

Aquelles a quem elle se dirigira creram facilmente em suas palavras, applaudindo esta empreza, mais digna de um principe do que de um simples fidalgo; e desde logo lhe prometteram a sua interferencia junto do rei, afim de que Villegaignon conseguisse todas as coisas necessarias á navegação (4).

Entendiam, até, que o emprehendimento seria agradável ao monarcha, pois resultaria em sua propria gloria e honra e em proveito da sua nação. Assim, foi o negocio solicitado com a maxima diligencia, logrando despacho favorável, tanto que em breve obtinha Villegaignon dois bellos e grandes navios e dez mil francos para os gastos com os homens que lhe seria preciso levar comsigo, assim como grande quantidade de artilharia, polvora, balas e armas para a construcção e defesa de um forte. Isto alcançado, entendeu-se elle com os capitães e pilotos para guiarem as caravellas e fazerem, em Brest, o carregamento de madeiras e outros accessorios. Para collimar o seu fim, só lhe restava encontrar gente fiel, de boa vida e educação, afim de habitar com elle no Brasil; e eis porque fez publicar por toda parte que precisava de pessoas tementes a Deus, pacificas e boas, pois bem sabia que lhe seriam mais úteis do que quaes-quer outras, em virtude da esperança que tinham de formar uma congregação cujos membros fossem votados ao serviço divino.

Algumas personagens de toda a honorabilidade, sem ligarem a menor importância á longa viagem, . nem á grandeza dos perigos que podiam sobrevir, nem á subita mudança de clima, nem á diversa maneira de viver, deixam-se persuadir pelas bellas e doces promessas de Villegaignon e decidiram-se a acompanhai-o. Era-lhe tambem indispensavel assalariar trabalhadores e operarios de todas as profissões ; mas com muita difficuldade e mediante grande remuneração poude encontrai-os, e isto mesmo entre gente rustica, sem a mais leve noção de honestidade e civilidade, impudica, dissoluta e dada a toda a sorte de vícios (5).

Emquanto aguardava o dia da partida, Villegaignon parlamentava com aquellas personagens que, como elle, seguiam de boa vontade, fazendo-lhes sentir que esperava fazer, no Brasil, optima administração com os seus conselhos, pois era seu proposito, segundo accentuava, subordinar tudo á deliberação dos mais notaveis ; e que, 'no concernente á religião, seu desejo era que a Egreja a ser ali fundada fosse Reformada como a de Genebra.

Era isto o que elle promettia em todas as reuniões, pelo que todos, de coração, lhe desejavam êxito completo no seu emprehendimento, si bem que

alguns suspeitassem de tal empreza, dados os precedentes do almirante e o modo tyrannico por que se houvera, quando commandante de galeras na sua mocidade (6).

A viagem

Sob esta boa impressão, todos os da comitiva se alojaram com Villegaignon nos navios, que logo em seguida levantaram ferros, deixando o Havre aos 15 de julho de 1555. E, depois de haverem passado, por grandes perigos, difficuldades e accidentes penosos durante a viagem, como: estacionamentos, falta d’agua potável, pestilencias, calor excessivo, ventos contrarios, tempestades, intemperies da zona torrida e outras coisas que seria fastidioso enumerar, – chegaram finalmente ao Brasil, terra da America, onde o polo Antartico se eleva 23o. sobre o horizonte, mais ou menos.[7]

Por occasião do desembarque dos Francezes, os habitantes do paiz sahiram ao seu encontro e dispensaram-lhes franco acolhimento, presenteando-os com viveres e diversas coisas curiosas, no intuito de fazerem com elles uma alliança perpetua.

Servidão egypcia

Partindo do Havre, os passageiros não inquiriram si Villegaignon se premunira de viveres para aquelles que ficassem em terra, como fôra de suppor. Por isso, ao ser-lhes constatado que absolutamente não os havia para a sua subsistencia, acharam elles muito estranho tal procedimento e em grande maneira se aborreceram por terem que se conformar com os alimentos desta nova terra, os quaes consistiam de fructos e raízes, em logar de pão, e de agua em vez de vinho, e isto em quantidade tão miseravel que para um só homem não era bastante o que se distribuía para quatro.

Em conseqüência desta brusca mudança, diversos cahiram gravemente enfermos e não mais se puderam levantar, porque tambem não havia medicamentos o que exasperou fortemente a muitos contra Villegaignon, a quem accusavam de insaciavel avareza e de ter economisado o dinheiro do rei, empregando-o só em proveito proprio, quando devera applical-o na acquisição de viveres e de todas as coisas indispensaveis ao sustento e preservação da saude dos que levára para tão longínquas regiões.

E’ certo que os marinheiros que já tinham viajado nestes paizes, asseguraram que havia nelles abundantes provisões de boca, e que, por conseguinte, não se tornava necessario carregar de generos os navios na partida.

E foi precisamente isto que servio de desculpa e defesa a Villegaignon.

A amargura dos pobres homens era tanto mais intensa quanto a situação permanecia irremediavel. Accresce que nem por isso se lhes diminuía o trabalho, mas, ao contrario, era este augmentado dia a dia, como si, porventura, fossem bem alimentados. Para. maior flagello, a ardencia do sol era tão causticante como ninguem o poderia ter imaginado. Desde a manhã até a noite obrigavam-n’os, tambem, a quebrar 'pedras, a carregar terra e a cortar madeiras, porque o logar, o tempo e a occasião requeriam uma grande diligencia, pelo receio de possível ataque, quer por parte dos naturaes do paiz, quer por parte dos Portuguezes, então inimigos acerrimos dos Francezes nessa região.




--------------------------------------------------------------------------------

[1]Crespin 1564, pag. 837 ; 1570, pag. 442 ; 1597, pag. 190 ; 1619, pag. 410. Na edição de 1564 esta narrativa vem subordinada ao título: Sobre a igreja dos Fieis no paiz do Brasil, parte da America Austral : sua afflicçãoe dispersão,

(2) Trata-se, evidentemente, de Jean de Lery, ao qual, posto que lhe não decline o nome, Crespin se reconhece devedor da narração que passa a fazer. Esta é a reproducçâo do opusculo publicado em 1561 – Histoire des choses mémorables survenues en la terre de Brésil, de que falámos em a nota precedente,

(3) Allusão á obra deThevet, cosmographo de Henrique II e companheiro de Villegaignon : Les singularités de la France Antarctique (1558), onde o autor defende o almirante das accusações dos Protestantes, a quem calumnia mas aos quaes Jean de Lery faz justiça em seu livro – Histoire d'un voyage fait dans le pays du Brésil.

(4) Crespin omitte a parte tomada por Coligny nesta empreza, decerto por considerar-se desobrigado, em I56I, de inserir-lhe o nome na narrativa de uma expedição tristemente celebre e que foi um verdadeiro fracasso. Mas, Jean de Lery, publicando o seu livro aipis a morte de Coligny, completa neste particular, a narração de I56I : «De facto, sob tal pretexto e porque revelasse as mais bellas intenções, Villegaignon conquistou a sympathia dos mais influentes da Religião Reformada, os quaes, inspirados pelo mesmo motivo affectado por aquelle, desejavam retirar-se para um tal refugio : no numero destes estava Gaspard de Coligny, almirante de França, de abençoada memória, o qual, gosando do favor de Henrique II, que então reinava, fez-lhe sentir que Villegaignon poderia descobrir muitas riquezas e conquistar grandes vantagens para o reino, caso fizesse a projectada viagem. Assim, Coligny obteve que a Villegaignon fossem dados dois bellos navios equipados e munidos de artilharia, bem como dez mil francos para a viagem» (Lery, edição Gaffarel 1, 40. Vide tambem Bèze, Historia Ecclesiastica, 1, 59; Aubigné, Historia Universal, tomo I, livro I, cap. XVI e livro II, cap. VIII; Delaborde, Gaspard de Coligny, 1, I45; II, 431).

[5]Claude Haton, em suas Memorias (edição Bourquelot, pag. 17) diz : «Com permissão do rei, Villegaignon visitou as prisões de Paris para ver os prisioneiros que lhe podiam ser úteis,»

(6) Villegaignon commandára as quatro galeras que levaram soccorros a rainha d’Escocia, Maria de Lorena, e a sua conducta, nesta expedição, valeu-lhe o título de vice-almirante de Bretanha.

(7)Villegaignon entrou na Guanabara no dia 10 de novembro de 1555.



o, em 1907, traduzido a Confissão de Fé que determinou a execução dos martyres Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e Pierre Bourdon, para que constasse do Relatório da Egreja Presbyteriana, desta Capital, apresentado pelo dr. Alvaro Reis, seu pastor collado, e relativo ao mesmo anno, precedeu-a de alguns conceitos que, com a devida vênia, passamos a transcrever, por constituírem excellente Prefacio ao nosso trabalho:

«Vae-se alargando o martyrologio da Egreja de Christo no Brasil: -

Ainda rubra corre a torrente, quando o céo chora sobre o sangue do ultimo martyr, e a memória dos primeiros não tem um monumento, no coração siquer de seus confrades.

E' tempo de se levantarem as campas. Tirem-se as relíquias, e alcemol-as! São os nossos trophéos.

Não ha no mundo quem tenha mais vivo monumento dos seus martyres que nós. Nem o Colyseu com as suas arcarias soturnas: o rugido das feras ha muito que emmudeceu.

Ali, porém, naquella bellissima bahia de Guanabara, está a ilha, onde primeiro, em terras da America, os fíeis commemoraram a morte do Salvador.

Ao cimo da collina, uma fortaleza, como então.

Seu nome perpetúa a memória execranda do carrasco.

Lá, a rebentar dos arrecifes, as mesmas ondas que sorveram os corpos dos martyres, vêm cobrir de branca espuma a rocha que servio de cadafalso.

E o mar ainda ruge como no dia do martyrio.

Templo, cadafalso e jazigo.

Jean de Lery, o historiador da expedição de Villegaignon, por que no dia das retribuições não se lhe leve em conta o olvido, emprehendeu narrar os martyrios de seus irmãos na terra do Brasil.

Quebraram-se uma por uma as promessas do ambicioso almirante; Richier é injuriado em plena congregação; os sermões são criticados com vehemencia pelo intimo do chefe da expedição ; por fim, violenta, estoura a apostasia.

Disputava-se sobre a doutrina dos Sacramentos, e Chartier, o outro pastor que Calvino enviára, voltou á Europa, levando appello ás egrejas-mães.

Sósinho, a luctar contra a violencia, Richier e os fieis foram obrigados a deixar o forte e ir para o continente.

Depois de muito soffrer, puderam, um dia, ver-se à bordo de um navio que os devia repatriar. No alto mar, porém, o velho barco fazia água, e tão desgraçadamente , que o deposito de viveres inundara. Era necessário diminuir os de bordo; e tocou a cinco delles voltarem numa . chalupa para a terra, onde tanto soffreram.

Villegaignon os recebeu com toda a bondade. Os remorsos, porém, que lhe torturavam a alma, levantavam a cada canto um phantasma, e como Caim, o apostata e assassino, temia que um braço vingador viesse, de um golpe, cercear-lhe a ambição. E os pobres homens, tornaram-se suspeitos de traição e espionagem.

Resolvido a eliminal-os, buscava ainda o vil perseguidor um véo para encobrir o crime.

Sabia bem o mesquinho que a mesma fé ardente no coração dos confessores reduzidos a cinzas lá na pátria, mais ardente que as brazas das fogueiras, também inflammava o coração das suas victimas: lembrou-se que era ali o representante de Henrique II.

Era direito dos governadores, em nome do rei, exigir dos subditos uma confissão de sua fé. O almirante ordenou, portanto, que em doze horas respondessem aos artigos de fé que lhes enviára.

O mais velho, distinto entre elles, porque velava pela piedade de seus irmãos e porque em letras possuía conhecimentos da língua latina, foi eleito para redigir a resposta. Sem livros, só possuíam a Bíblia, simples crentes que talvez não tivessem aos pés de Calvino um , curso de divindades, afflictos, cansados, em um dia, foram obrigados a responder a difficeis questões.

Jean du Bourdel escreveu; os outros assignaram a sua Confissão de Fé.

Recebido o documento, o tyranno o fez vir à sua presença.

Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil e André la Fon vieram; Pierre Bourdon, afflicto por moléstia, ficara no continente.

Estavam promptos, disseram, a sustentar a Confissão. Enraivecido, ordenou Villegaignon que os mettessem no carcere a ferros.

Durante a noite, todas as horas ia revistar as algemas, a porta do cárcere, rondar as sentinellas.

Os servos de Deus, entretanto, oravam, cantavam psalmos e se consolavam mutuamente.

Na manhã de sexta-feira 9 de fevereiro de 1558, desceu Villegaignon, bem armado, com um pagem, a uma sala. Mandou apresentar du Bourdel, e mandou-lhe explicar o 5.° artigo da sua confissão. Ao responder du Bourdel, uma bofetada, do apostata fez-lhe jorrar sangue da face, e Villegaignon mofára das suas lagrimas de dôr.

Conduzido ao supplicio, ao passar pela prisão, bradava aos seus cornpanheiros que tivessem bom animo, pois breve seriam livres desta triste vida.

Cantando psalmos, subiu á rocha; orou, e, atado de pés e mãos, o algoz o arrojou ás ondas.

Seguiu-o Matthieu Verneuil.

A's suas supplicas que o poupasse, tivesse-o como escravo, respondia o verdugo, menos valor tinha qui o lixo do caminho: Tendo orado, exclamando: - «Senhor Jesus, tem piedade de 'mim» - desappareceu no mar.

Pierre Bourdon, fraco, debilitado pela molestia foi obrigado a levantar-se, e levado para a ilha.

Lá percebeu o que o esperava, Ao presentir o logar onde soffreram seus irmãos não se entristeceu, pois tinham ali obtido a victoria. Cruzou os braços, elevou os olhos ao céo ; orou.

Antes de morrer, quiz saber a causa de sua morte. Respondeu-se-lhe que era a sua assignatura de uma Confissão heretica e escandalosa.

O rugido do mar não permittiu mais ouvir a sua voz clamar pelo soccorro e favor de Deus, e o seu corpo desappareceu no abysmo das aguas.

E foi assim naquelles tempos que os nossos irmãos pagaram com a vida a audacia de confessar a sua fé ; e, hoje, muita gente balbucia, hesita, ante o sorriso mofador, de qualquer insolente.

* * *

Mas o Protestantismo no Brasil, em especial, grande e relevantissimo serviço deve ao dr. Pedro Souto Maior: referimo-nos á traducção pelo mesmo feita das Actas dos Synodos e Classes do Brasil, no século XVII, durante o dominio hollandez, as quaes, em Appendice, juntamos a este trabalho, autorizados pelo conspicuo traductor e insigne mestre, a quem hypothecamos eviterna gratidão.

E, por certo, injusto fôra que deixassemos tambem de render, aqui, homenagem á maior autoridade, no Catholicismo Protestante Brasileiro, em materia de historia geral e ecclesiastica - o notavel tribuno e emérito publicista dr. Alvaro Reis, autor de obras de reconhecido valor, das quaes, dada a sua intima relação com o «martyrio dos huguenotes», recommendamos aos estudiosos a que tem por titulo - O Martyr le Balleur.

Não encerraremos, todavia, este Proemio sem assignalar a alta conveniencia, ou antes, á imperiosa necessidade da creação de uma Biblioteca do Protestantismo Brasileiro, como as que existem em outros paizes. As vantagens de um tal Departamento seriam incalculáveis. Attente-se, por exemplo, ao enorme auxilio que a Bibliotheca do Protestantismo Francez prestou a Matthieu Leliévre, annotador da obra de Crespin, como se vê destas suas palavras : « L'accès aux grandes Bibliothèques de Paris nous a permis de remonter aux sources de plusieurs chapitres du Martyrologe. Nous avons notamment trouvé à la Bibliothèque Nationale les ouvrages qui ont foumi à Crespin et à ses continuateurs les notices sur Ange Le Merle, l'lnquisition d'Espagne et la grande persécution de l'Eglise de Paris, et à la Bibliothéque. De l'Arsenal, le livre sur l'expédition de Villegaignon, qui a passé tout entier dans l'Histoire des Martyres. Nous ne devons pas oublier de mentionner la Biblíothèque dii . Protestantisme Français, qui occupe une place déjà distinguée parmi les grands dépòts des richesses liitéraires de la France. Son bibliothécaire, M. N. Weiss, nous a foumi, à diversej reprises, des indications utiles, et nous n'avons jamais fait appel en vain à son obligeante érudition».

Quem, pois, se disporá a estudar este magno assumpto?

Quem tomará a iniciativa de tão utilitario emprehendimento?

Endereçamos, em particular, taes questões aos ministros e professores de maior prestigio do Catholicismo Protestante no Brasil.

* * *

Oxalá que as presentes traduções, a par de outros benefícios, produzam, em nosso meio religioso, um maior interesse pelos assumptos históricos, notadamente pelos que se prendem á Igreja Evangélica - esse ramo orthodoxo do Christianismo, embora assim não seja reconhecido pelos Papistas obcecados !
Jesus Christo, alçando em tantos logares, na actual Dispensação da Graça, a flammula sacrosanta de seu Evangelho, revela-se, mesmo, aos povos desconhecidos e barbaros e chama a si, por este meio, todos os habitantes do mundo, antes de executar sobre elles o ultimo julgamento. Porém os falsos christãos e, sobretudo, os apostatas, pela sua ingratidão e maldade crescentes, procuram impedir, mais do que os proprios tyrannos, a difusão da verdade, como resaltará da narrativa que vamos fazer e que nos deve estimular a seguirmos o Evangelho, embora com o sacrifício de nossas commodidades; a supportarmos, resignados, a fome, a sede, a nudez e todas as tripulações que Deus permittir nos sobrevenham para exercício, prova e aperfeiçoamento de nossa paciencia.

Como preparo indispensavel á boa intelligencia da historia dos primeiros crentes evangelicos que, por causa da sua fé intemerata na doutrina do Filho de Deus, regaram o solo brasileiro com o seu sangue, não nos occuparemos já de nosso principal assumpto e, sim, de seus preliminares – o inicio e o motivo da existencia de uma Egreja Reformada, segundo as Santas Escripturas, em paragem tão distante e apartada das nações.

A rememoração de tão notaveis acontecimentos, desenrolados por esse tempo, deve mover-nos a uma meditação continua sobre as maravilhas do Senhor, tanto mais quanto cremos que aquelles a quem cabe o dever de proclamal-as sentirão, no futuro, remordimentos de consciencia, si deixarem de cumpril-o ; e taes considerações, aliás, levaram uma personagem digna de toda a fé a publicar, por escripto, tudo o que vira em referencia aos factos de que nos occupamos e a quem tornaremos, por emprestimo, as palavras e a narração que se seguem (2) :

“ Posto que a verdade, por si mesma, sem qualquer artificio, prevaleça contra a mentira, e não nos seja permittido accrescentar-lhe coisa alguma, todavia, quando opprimida durante certo tempo pelo esforço maligno dos adversarios, póde ella estar como enterrada.

Mas um dia far-se-á, luz e aquillo que estivera profundamente occulto apparecerá em plena evidencia, afim de que no scenario do mundo se descubram os hypocritas e os cynicos.”

_______________________



Quanto ao fracasso da tentativa de colonização huguenote, Jean de Lery, um dos membros da expedição, deixou-nos interessantíssimo trabalho, intitulado : Histoire d'un voyage fait en la terre du Brésil, – livro este que teve já oito edições em francez, das quaes a mais recente se deve a Paul Gaffarel, Paris, 1880, e cinco em latim. Mas esta obra, tendo apparecido pela primeira vez em 1578,é claro que da mesma não se poderia ter soccorrido Crespin para a presente noticia, que figurava já na edição de 1564. O martyrologio é a reproducção pura e simples de um pequeno volume, in-16, de 48 fls., que em parte alguma vimos mencionado, mas do qual ha um exemplar na Bibliotheca do Arsenal (H 12102), e intitula-se : Histoire des choses mémorables survenues en la terre du Brésil, partie de l’Amérique Australe, sous le gouvernement de N. de Villegaignon, depuis l’an,1555 jusqu’á l’an 1558 (1561, S I). Quem é, todavia, o autor deste escripto? Qual é essa personagem digna de fé á qual Crespin declara pertencerem as «palavras e a narração» deste capítulo de seu livro ? A hesitação não e possível sinão entre os nomes de doas testemunhas presenciaes dos factos, ambas as quaes se teem occupado delles por escripto. Um é Pierre Richier, que fôra, como ministro, enviado por Calvino ao Brasil, e que, em 1561, publicou uma Refutação ás loucas fantasias, ás execraveis blasphemias, aos erros e ás mentiras de Nicolas Durand de Villegaignon (in-16, S I, 176 fls. – Bibliotheca do Protestantismo Francez), obra seguida nesse mesmo armo de pamphletos energicos sobre o mesmo assumpto e, provavelmente, do mesmo autor. Mas um exame attento leva-nos a crer que Richier não póde ter sido o autor da narrativa reproduzida por Crespin – tamanha é a differença entre o fundo e a fórma deste relato. e a maneira peculiar por que Richier descreve os mesmos acontecimentos ; diversidade tanto mais estranhavel si elle houvesse feito duas vezes, no mesmo armo, a alludida narração. Resta-nos, pois, Jean de Lery, autor da obra acima indicada. Verdade é que, referindo, no prefacio de seu livro, as vicissitudes do respectivo manuscrito, elle não allude a esta publicação de 1561; mas, quasi no fim da obra, declara haver collaborado no Livro dos Martyres (vide adiante, no martyrio de Jean du Bourdel, a nota correspondente). Facilmente se concebe que Crespin, não podendo logo inserir a narrativa em seu Martyrologio, o qual só em 1564 appareceu, deliberou fazer da mesma uma edição distinta : e tal a origem do pequeno volume de 1561, destinado a refutar a versão que dos factos espalharam Villegaignon e os seus amigos.

_____________



Fructo e utilidade desta historia

Por esta razão, e porque seja louvavel reconduzir ao caminho direito os que delle se desviaram, urge tambem se torne conhecida a verdade quanto á tragedia de que o Brasil foi theatro ; e, para consecução satisfatória de tal objectivo, importa comecemos pelo relato de tudo o que se convencionou, de tudo o que se fez e de tudo o que occorreu. Servira isto de aviso, para que d’ora em diante não se creia facilmente em coisas sobre que se não estiver bastante! intelligenciado e para que a respeito dellas não se exerça, com precipitação, um juízo definitivo.

O exposto seria motivo sufficiente para traçar-mes esta narrativa. Duas outras razões, porém, de não menos peso e valor, dão á tarefa o caracter de indeclinavel : a grandeza do facto e a circunstancia dos logares.

Sim, onde o historiador que haja registrado que nessa terra recentemente descoberta alguem tenha sido sacrificado e morto, porque ousára espalhar, ali, o conhecimento da Palavra de Deus? Os selvagens teem assassinado e devorado alguns Portuguezes e Francezes. Mas – qual a razão? Unicamente porque as victimas, pela sua propria avareza e ambição desmesuradas, os haviam ultrajado e offendido. Todos sabem perfeitamente que os Portuguezes e mesmo os Francezes que teem estado nessas regiões jámais falaram aos selvicolas uma palavra, siquer, no concernente a Christo Jesus Senhor nosso.

E porque os tres fieis cuja morte descreveremos mais adiante foram os primeiros que, no Brasil, experimentaram o martyrio por causa do Evangelho, segue-se que seria indecoroso, importaria uma injustiça clamorosa, e de más consequencias, si deixasse-mos a sua memorial no olvido e completamente extinta entre os homens, pois que, nesse caso, o seu sangue bradaria ao Céo por vingança contra semelhante indignidade.

Taes reflexões determinaram nas testemunhas oculares dos acontecimentos que vão ser aqui narrados e por cujos mãos transitou esta compilação o forte desejo de que a mesma fosse transmittida ao leitor, afim de prevenil-o contra as calumnias (3) que obscurecessem e deturpassem a verdade sobre as causas da empreza, meios, execução, protestos, revoltas e o mais que se segue.

Disputa de Villegaignon em França

Nicolas de Villegaignon, nomeado vice-almirante em Bretanha, desaviera-se com o capitão da cidadella de Brest, principal fortaleza de todo o paiz, e isso por questões technicas da fortificação da mesma. Originou-se dahi um descontentamento e, um odio mortal entre ambos, de modo que, para se defrontarem, buscavam só o momento propicio.

O caso chegára aos ouvidos de Henrique II. Este, porém, favorecia muito mais ao capitão da cidadela do que ao vice-almirante, circunstancia que tirava a Villegaignon toda a esperança de successo na disputa. Sem embargo, pensava elle que, pelo menos, poderia arruinar ou tornar odioso o seu adversário. Mas, neste sentido, ia conseguindo pouco, pelo que começou a aborrecer-se em França, accusando-a de enorme ingratidão, visto que ao serviço delia consummira toda a sua juventude na carreira militar. Accrescentava, ainda, que, em face do resultado quasi nullo que obtivera .de seus trabalhos passados, não podia mais ali permanecer por muito tempo.

Ora, na cidade de Brest, residia então um preposto do thezoureiro da Marinha, o qual era íntimo de Villegaignon. Um dia, quando se achavam á meza, referio-se aquelle a uma viagem que fizera ás Indias Meridionaes e, alludindo ao Brasil, louvou elle extraordinariamente a sua temperatura, a belleza e a serenidade do céo, a fertilidade da terra, a abundância de viveres, as riquezas naturais e coisas outras de todo desconhecidas dos antigos.

Villegaignon sonha a fundação de uma monarchia

no Novo Mundo

A descripção agradára immenso a Villegaignon e de tal modo lhe aguçou a cobiça que elle constrangia o seu informante a repetir-lhe freqüentemente as mesmas palavras, sonhando o dominio de toda essa terra. Seu desejo de ir até lá augmentava dia a dia.

Faltavam-lhe, porém, os meios, tanto mais quanto, em deixando a França, queria fazel-o com honra e boa reputação, o que lhe acarretaria grande despesa, para a qual não estava apparelhado. De, resto, Henrique II julgaria muito mau que elle se exilasse voluntariamente entre gente a mais deshumana que existia debaixo do céo.

Entretanto, por subtis meios, esforçava-se Villegaignon por captar as sympathias daquelles que lhe podiam dar apoio efficiente para a feliz prosecução de seu projecto, aos quaes affirmava que seu vehemente desejo e mais forte empenho era procurar um sitio de repouso e tranquïllidade, onde pudesse estabelecer os perseguidos em França por causa do Evangelho; e que, havendo longamente pensado sobre o melhor logar para fugir á crueldade e tyrannia dos homens, elle se lembrára da terra do Brasil, da qual todos os navegántes se manifestavam encantados, enaltecendo a sua temperatura e a sua fertilidade, e onde se poderia commodamente viver.

Aquelles a quem elle se dirigira creram facilmente em suas palavras, applaudindo esta empreza, mais digna de um principe do que de um simples fidalgo; e desde logo lhe prometteram a sua interferencia junto do rei, afim de que Villegaignon conseguisse todas as coisas necessarias á navegação (4).

Entendiam, até, que o emprehendimento seria agradável ao monarcha, pois resultaria em sua propria gloria e honra e em proveito da sua nação. Assim, foi o negocio solicitado com a maxima diligencia, logrando despacho favorável, tanto que em breve obtinha Villegaignon dois bellos e grandes navios e dez mil francos para os gastos com os homens que lhe seria preciso levar comsigo, assim como grande quantidade de artilharia, polvora, balas e armas para a construcção e defesa de um forte. Isto alcançado, entendeu-se elle com os capitães e pilotos para guiarem as caravellas e fazerem, em Brest, o carregamento de madeiras e outros accessorios. Para collimar o seu fim, só lhe restava encontrar gente fiel, de boa vida e educação, afim de habitar com elle no Brasil; e eis porque fez publicar por toda parte que precisava de pessoas tementes a Deus, pacificas e boas, pois bem sabia que lhe seriam mais úteis do que quaes-quer outras, em virtude da esperança que tinham de formar uma congregação cujos membros fossem votados ao serviço divino.

Algumas personagens de toda a honorabilidade, sem ligarem a menor importância á longa viagem, . nem á grandeza dos perigos que podiam sobrevir, nem á subita mudança de clima, nem á diversa maneira de viver, deixam-se persuadir pelas bellas e doces promessas de Villegaignon e decidiram-se a acompanhai-o. Era-lhe tambem indispensavel assalariar trabalhadores e operarios de todas as profissões ; mas com muita difficuldade e mediante grande remuneração poude encontrai-os, e isto mesmo entre gente rustica, sem a mais leve noção de honestidade e civilidade, impudica, dissoluta e dada a toda a sorte de vícios (5).

Emquanto aguardava o dia da partida, Villegaignon parlamentava com aquellas personagens que, como elle, seguiam de boa vontade, fazendo-lhes sentir que esperava fazer, no Brasil, optima administração com os seus conselhos, pois era seu proposito, segundo accentuava, subordinar tudo á deliberação dos mais notaveis ; e que, 'no concernente á religião, seu desejo era que a Egreja a ser ali fundada fosse Reformada como a de Genebra.

Era isto o que elle promettia em todas as reuniões, pelo que todos, de coração, lhe desejavam êxito completo no seu emprehendimento, si bem que

alguns suspeitassem de tal empreza, dados os precedentes do almirante e o modo tyrannico por que se houvera, quando commandante de galeras na sua mocidade (6).

A viagem

Sob esta boa impressão, todos os da comitiva se alojaram com Villegaignon nos navios, que logo em seguida levantaram ferros, deixando o Havre aos 15 de julho de 1555. E, depois de haverem passado, por grandes perigos, difficuldades e accidentes penosos durante a viagem, como: estacionamentos, falta d’agua potável, pestilencias, calor excessivo, ventos contrarios, tempestades, intemperies da zona torrida e outras coisas que seria fastidioso enumerar, – chegaram finalmente ao Brasil, terra da America, onde o polo Antartico se eleva 23o. sobre o horizonte, mais ou menos.[7]

Por occasião do desembarque dos Francezes, os habitantes do paiz sahiram ao seu encontro e dispensaram-lhes franco acolhimento, presenteando-os com viveres e diversas coisas curiosas, no intuito de fazerem com elles uma alliança perpetua.

Servidão egypcia

Partindo do Havre, os passageiros não inquiriram si Villegaignon se premunira de viveres para aquelles que ficassem em terra, como fôra de suppor. Por isso, ao ser-lhes constatado que absolutamente não os havia para a sua subsistencia, acharam elles muito estranho tal procedimento e em grande maneira se aborreceram por terem que se conformar com os alimentos desta nova terra, os quaes consistiam de fructos e raízes, em logar de pão, e de agua em vez de vinho, e isto em quantidade tão miseravel que para um só homem não era bastante o que se distribuía para quatro.

Em conseqüência desta brusca mudança, diversos cahiram gravemente enfermos e não mais se puderam levantar, porque tambem não havia medicamentos o que exasperou fortemente a muitos contra Villegaignon, a quem accusavam de insaciavel avareza e de ter economisado o dinheiro do rei, empregando-o só em proveito proprio, quando devera applical-o na acquisição de viveres e de todas as coisas indispensaveis ao sustento e preservação da saude dos que levára para tão longínquas regiões.

E’ certo que os marinheiros que já tinham viajado nestes paizes, asseguraram que havia nelles abundantes provisões de boca, e que, por conseguinte, não se tornava necessario carregar de generos os navios na partida.

E foi precisamente isto que servio de desculpa e defesa a Villegaignon.

A amargura dos pobres homens era tanto mais intensa quanto a situação permanecia irremediavel. Accresce que nem por isso se lhes diminuía o trabalho, mas, ao contrario, era este augmentado dia a dia, como si, porventura, fossem bem alimentados. Para. maior flagello, a ardencia do sol era tão causticante como ninguem o poderia ter imaginado. Desde a manhã até a noite obrigavam-n’os, tambem, a quebrar 'pedras, a carregar terra e a cortar madeiras, porque o logar, o tempo e a occasião requeriam uma grande diligencia, pelo receio de possível ataque, quer por parte dos naturaes do paiz, quer por parte dos Portuguezes, então inimigos acerrimos dos Francezes nessa região.




--------------------------------------------------------------------------------

[1]Crespin 1564, pag. 837 ; 1570, pag. 442 ; 1597, pag. 190 ; 1619, pag. 410. Na edição de 1564 esta narrativa vem subordinada ao título: Sobre a igreja dos Fieis no paiz do Brasil, parte da America Austral : sua afflicçãoe dispersão,

(2) Trata-se, evidentemente, de Jean de Lery, ao qual, posto que lhe não decline o nome, Crespin se reconhece devedor da narração que passa a fazer. Esta é a reproducçâo do opusculo publicado em 1561 – Histoire des choses mémorables survenues en la terre de Brésil, de que falámos em a nota precedente,

(3) Allusão á obra deThevet, cosmographo de Henrique II e companheiro de Villegaignon : Les singularités de la France Antarctique (1558), onde o autor defende o almirante das accusações dos Protestantes, a quem calumnia mas aos quaes Jean de Lery faz justiça em seu livro – Histoire d'un voyage fait dans le pays du Brésil.

(4) Crespin omitte a parte tomada por Coligny nesta empreza, decerto por considerar-se desobrigado, em I56I, de inserir-lhe o nome na narrativa de uma expedição tristemente celebre e que foi um verdadeiro fracasso. Mas, Jean de Lery, publicando o seu livro aipis a morte de Coligny, completa neste particular, a narração de I56I : «De facto, sob tal pretexto e porque revelasse as mais bellas intenções, Villegaignon conquistou a sympathia dos mais influentes da Religião Reformada, os quaes, inspirados pelo mesmo motivo affectado por aquelle, desejavam retirar-se para um tal refugio : no numero destes estava Gaspard de Coligny, almirante de França, de abençoada memória, o qual, gosando do favor de Henrique II, que então reinava, fez-lhe sentir que Villegaignon poderia descobrir muitas riquezas e conquistar grandes vantagens para o reino, caso fizesse a projectada viagem. Assim, Coligny obteve que a Villegaignon fossem dados dois bellos navios equipados e munidos de artilharia, bem como dez mil francos para a viagem» (Lery, edição Gaffarel 1, 40. Vide tambem Bèze, Historia Ecclesiastica, 1, 59; Aubigné, Historia Universal, tomo I, livro I, cap. XVI e livro II, cap. VIII; Delaborde, Gaspard de Coligny, 1, I45; II, 431).

[5]Claude Haton, em suas Memorias (edição Bourquelot, pag. 17) diz : «Com permissão do rei, Villegaignon visitou as prisões de Paris para ver os prisioneiros que lhe podiam ser úteis,»

(6) Villegaignon commandára as quatro galeras que levaram soccorros a rainha d’Escocia, Maria de Lorena, e a sua conducta, nesta expedição, valeu-lhe o título de vice-almirante de Bretanha.

(7)Villegaignon entrou na Guanabara no dia 10 de novembro de 1555.

Nenhum comentário:

Postar um comentário