TRAGÉDIA DE GUANABARA4

Os operarios, pouco sensíveis em questões de honra, persuadiram-se de que, si este era o começo, o fim seria inconcebível. Os mais sagazes de entre elles previam que, no caso de deixarem crescer o jugo que se lhes impunha. quando se achavam, ainda, na sua maioria, sãos e bem dispostos, mais tarde não haveria reacção possível (8).

Nestas condições, formaram um complot e reuniram os havidos por mais dignos de serem admitidos ao conselho, ficando concertados os meios pelos quaes se poderiam libertar do cruel jugo da servidão que pesava sobre elles contra todas as leis civis e humanas.

Entendiam uns que se deveriam juntar aos naturais do paiz, sem tentar mais coisa alguma. De opinião contraria eram outros, que reputavam mais acertado bandear-se para os Portuguezes que habitavam ali perto. A maioria, porem, que quasi sempre suffoca a melhor idéa, não approvou nenhum dos alvitres suggeridos, os quaes lhe pareceram impraticaveis para obtenção segura da sua plena e inteira liberdade. Finalmente, o mais audacioso demonstrou-lhes que se enganariam redondamente, si deixassem viver por mais tempo a Villegaignon e aos que tentassem defendel-o, chegando mesmo a affirmar que seria facílimo eliminai-os, pois não pairavam suspeitas a respeito delles.

Ficou vencedora esta opinião, que foi unanimemente approvada, louvando todos a intelligencia de seu autor, ao qual delegaram a chefia da conspiração ; e cada qual, já dante-mão, em sua imaginação, dividia o despojo que seria arrecadada.

A senha foi dada e escolhido o dia da execução – um domingo, quando cada um se retirava para o seu logar sem provocar desconfianças. Uma só coisa parecia prejudicar e impedir o êxito da trama : eram tres marinheiros escocezes que guardavam a Villegaignon. Mas os conspiradores tentaram logo allicial-os, afim de encontrarem menos obstáculos na realização de seu projecto.

Os marujos fingiram approvar o seu desígnio, allegando maus tratos recebidos de Villegaignon, tanto em França como durante a viagem ; e, em sua dissimulação, informaram-se do dia e hora exactos e dos meios da execução, bem assim dos nomes dos conspiradores que tornariam parte nella.

Senhores de todo o plano, entenderam que fôra indigno e deshumano occultal-o. Dirigiram-se, pois, de preferencia, a um dos amigos mais íntimos de Villegaignon, tanto pelo conhecimento que elle possuía da língua escoceza como por outras razões, e revelaram-lhe toda a conjuração, os nomes dos principais conspiradores, o dia e hora da execução, afim de que Villegaignon, dest’arte avisado, pudesse' tomar as precisas precauções e dar um exemplo salutar á posteridade.

Villegaignon e os que lhe eram fieis, assim prevenidos, armaram-se e prenderam quatro dos principaes conspiradores, aos quaes inflingiram severíssima punição, para escarmento dos demais e para os conservar adstrictos ao seu dever e á sua condição, sendo que dois delles foram postos em prisões com cadeias e ferros e obrigados a trabalhos públicos durante certo tempo (9).

Tal foi o epilogo desta conjuração.

Villegaignon não poude, portanto, negar que com elle tambem embarcára gente de bem, cujos serviços depois tão mal recompensou.



Villegaignon, por um emissario, solicita ministros á Egreja de Genebra

e é attendido



Este acontecimento tornou Villegaignon, por algum tempo, muito affeiçoado á Palavra de Deus, revelando-se elle, com effeito, assás zeloso e interessado em organizar, ali, uma Egreja, e exprimindo, a miudo, forte desejo de ter um ministro para doutrinar a sua família e catechizar a pobre gente do paiz, ignorante das coisas de Deus e das leis da civilidade e honestidade. Outrosim, freqüentes vezes lamentava a sua propria situação, em virtude de achar-se cercado de tão diminuto numero de pessoas dignas, por quem era confortado sempre em seus desgostos, o que lhe fazia pensar que a sua vida estaria muito mais segura entre gente virtuosa do que no meio de mercenários desprovidos de honra e de toda a moral.

Apressou-se, pois, em appellar para os ministros da cidade de Genebra, fazendo-lhes sentir a imperiosa necessidade que tinha de evangelistas, por isso que fôra para lá com o unico fim de ouvir as leis e ordenações do Senhor (10). E, accrescentando que de longa data formava a respeito delles e da Egreja Reformada o mais favorável conceito, pedia-lhes, como a irmãos em crenças, não lhe negassem conselho, beneplacito e soccorro, pois deste modo participariam dos beneficios e da perduravel memoria que de tal concurso certamente adviriam. Sob promessa do melhor dos acolhimentos, tanto no decurso da viagem como no paiz, rogava-lhes que com um ou dois ministros lhe enviassem tambem gente de officios, casada ou celibataria, indifferentemente, e mesmo algumas mulheres e moças para povoarem a nova terra; porquanto, segundo as suas previsões, difficil se tornaria habitar essa região por outros meios.

Ao receberem taes noticias, os pastores da Egreja de Genebra renderam graças a Deus, por abrir em paragens tão distantes uma porta á dilatação do reino de Jesus Christo.

Diligentemente, pois, escolheram dois ministros para tão nobre e santa missão : Pierre Richier ( 11 ) e Guillaume Chartier, ( 12) aquelle de 50 e este de 30 annos, ambos muito versados na sã doutrina e de exemplarissima conducta ; e, para com elles seguirem, foram chamados diversos operarios, dos quaes alguns eram casados ( 13).

A conducção desta companhia foi confiada a Philippe de Corguilleray, cognominado du Pont, cavalheiro muito considerado e que residia muito perto da cidade de Genebra, o qual, comquanto a sua idade e estado de saude não lh’o permittissem, não vacillou, todavia, em realizar tal viagem. Nem mesmo os seus negocios pessoaes e o amor que consagrava aos

seus filhos o demoveram de acceitar o encargo que o Senhor lhe impunha.

Em passando pela França com destino a Honfleur, porto de mar da Normandia, onde os navios a esperavam, espalhou-se logo a noticia da presença da comitiva e muitos enthusiastas se decidiram associar-se a ella, tendo-se, por occasião do embarque, apresentado grande numero de pessoas de Paris e da Normandia, das quaes só algumas foram admitti-

das, pois os navios não comportavam todas – tal o renome desta expedição largamente annunciada.

Iamo-nos esquecendo de assignalar que o emissario de Villegaignon havia referido muitas coisas honrosas a respeito deste, dizendo que os operarios seriam muito bem remunerados, que as mulheres dos casados receberiam pensões e que a todos seria dado tudo o que necessario fosse á sua vida e manutençao, ìnclusivé o direito de livremente regressarem a França, caso não se adaptassem á nova terra e não fossem recebidos, ali, segundo as promessas feitas em plena assembléa de Genebra.

Chegados a Honfleur, logar de seu embarque, foram acolhidos com muita cordialidade por aquel-les que estavam encarregados da sua recepção e os quaes, como era de esperar, lhes reiteraram as mesmas promessas.

No momento da partida cada qual se installou no navio que lhe fôra designado pelo chefe da navegação, pois seria impossível alojal-os todos num só, sem graves inconvenientes. Zarparam logo do porto de Honfleur e, enfunadas as velas, deixaram em breve as terras da Europa e aproximaram-se das ilhas Afortunadas ( 14), limitrophes da, Africa, onde – fosse pelo grande numero de pessoas ou fosse por furto praticado pelas guarnições – tiveram inicio as torturas dos passageiros pela espantosa reducção de alimento, como si, acaso, estivessem no mar ha dez mezes, occasionando este facto varios motins no decurso da viagem.

A’s reclamações os marinheiros respondiam sem rebuços que eram constrangidos a proceder deste modo em consequencia da falta de viveres ; e, quando os ministros lhes censuravam o mal e a injuria feita aos armadores, despojando-os de seus bens e mesmo de seus navios, o que seria horroroso permenorizar, maltratavam-n'os igualmente, calumniando-os da maneìra a mais vil e replicándo-lhes que assim lhes fôra ordenado por Villegaignon, por quem elles, marinheiros, se sentiam apoiados.

A’ vista disso os ministros acharam prudente remetter-se ao silencio, e os que dahi em diante ousavam reclamar particularmente eram cobertos de irrisão e ludibriados.

Abster-nos-emos de falar do mal praticado contra os Inglezes, dos quaes roubaram dinheiro e mercadorias e com quem estavamos, então, de paz jurada ; nem da sua pirataria exercida contra Hespanhoes e Portuguezes, cujos navios e cargas foram tomados á força e cujas equipagens – oh! crueldade inaudita! – foram encerradas em um navio, sem provisões, sem velas, sem botes, e deixadas, assim, ao abandono, em pleno oceano, á mercê das ondas, no maior e no mais cruciante dos infortunios... ( 15 )

Nada mais encontrando para saque, prosseguiram em sua rota em direcção ao Brasil, tendo suportado na zona torrida calor intensissimo e outros incommodos.

Após quatro mezes completos de permanencia no mar e extenuados por tão longa reclusão, transpuseram finalmente a barra de Coligny, na America Austral, e parte do Brasil situada como ficou atraz mencionado, encontrando lá a Villegaignon em uma ilha fortificada de ambos os lados com peças de artilharia – ilha tão deserta e desprovida de recursos que não haveria ninguem capaz de adaptal-a a um logar de habitação (16).

O rio (17) em que se acha localisado esta ilha é de belleza incomparavel, amplo e muito adequado aos grandes navios, podendo-se nelle penetrar a qualquer hora do dia ou da noite sem o mínimo receio de perigo. A entrada, em que se veem dois altos picos, tem de largura meia legua e doze braças de profundidade. Sua extensão é superior a dez leguas e em certos logares de tal modo se amplia que mede de seis a sete leguas de largo. E’ semeado de ilhas e ilhotas de singular belleza e recebe afluentes em que abundam grandes peixes. Dir-se-á mesmo que é o mar que alli se espraia.

Na ilha a que alludimos residia Villegaignon, pois escolhera-a para a construcção do forte a que se compromettera para com Henrique II.

E porque chegamos a este ponto parece-nos conveniente referir por quem e a que época foi descoberta esta região, visto que muitos leigos em taes assumptos suppõem haver sido Villegaignon o primeiro que ali esteve, quando a verdade é que, depois de Christovam Colombo, em 1497, a expensas do rei de Hespanha, haver descoberto a parte occidental, Americo Vespucio (18), então aos serviços do rei de Portugal, reconheceu, em 1500 mais ou menos, o continente do Brasil a uma grande distancia das Indias Occidentaes.

Os Portuguezes, na sua preoccupação de se apossarem dos melhores portos e enseadas, erigiram em Coligny uma torre de pedra, á qual denominaram Janeiro por haverem ali entrado nos primeiros dias desse mez; e nella deixaram elles alguns pobres condemnados á morte, para que se familiarizassem com os habitantes do paiz e apprendessem a sua lingua.

Os desterrados, porém, após certo tempo, comportaram-se tão mal em relação aos indigenas que alguns delles foram por estes assassinados e, até, comidos, e os outros tiveram que fugir para mar alto num pequeno barco. Depois os Portuguezes não ousaram mais ali habitar, porque o seu nome se fez até hoje tão odioso que para os indios é uma grande delicia o comer a cabeça de um Portuguez.

Mais tarde, em 1525, talvez, os armadores Francezes de Honfleur enviaram là os seus navios, tratando com os naturaes do paiz e comprando-lhes pau-brasil, pelles e outras mercadorias. Estabeleceram com elles uma alliança que ainda perdura e teem continuado todos os annos a navegação.

E' claro, portanto, que Villegaignon não foi o descobridor desse continente nem o seu primeiro habitante estrangeiro.

Feita esta rapida digressão, aliás indispensavel á boa intelligencia da presente historia, remettemos aos livros que tratam do assumpto aquelles que desejarem aprofundar-se no mesmo.

O desembarque dos fieis

Voltemos, pois, á comitiva de que iamos falando.

Chegados ao anhelado porto de Coligny, desembarcàram a 7 de março de 1557, tendo sido recebidos por Villegaignon e os demais com grandes demonstrações de regosijo, pelo concurso efficaz que lhes iam prestar. Foram dadas salvas, accesas fogueiras e não foram poupadas outras coisas de uso em momentos festivos.

Os ministros apresentaram as suas credenciaes assignadas por J. Calvin e que, outrosim, davam testemunho a respeito dos outros da companhia.

Villegaignon, após ter lido as cartas, regosijou-se e ficou sobremodo satisfeito com saber que tanta gente honesta e virtuosa tomára a suá empreza em alta consideraçào e estima. Declarou lhes então abertamente o que o induzira a abandonar os prazeres e delicias da França para viver de privações em um paiz onde, nos annos precedentes, estivera tão mal acompanhado, circumstancia que o levára a supplicar o favor e a coadjuvação dos pastores de Genebra. E como tal concurso não lhe fôra recusado, como era patente de tão grande numero de pessoas enviadas, sentia-se por isso mesmo ainda mais obrigado para com os de Genebra, de quem esperava a continuação de seu auxilio, dada a boa vontade que haviam manifestado desde o principio, o que agradecia com muito affecto.

Aos ministros e seus companheiros pedio estabelecessem o regulamento e a disciplina da Egreja, segundo a fórma da de Genebra, á qual elle promettera, em plena assembléa, submetter-se e bem assim toda a sua companhia.

Ouanto ao governo civil, formou Villegaignon um Conselho, constituindo-o de dez pessoas das mais respeitaveis e cujo presidente era elle proprio. A este Conselho teriam que ser levadas todas as questões religiosas ou profanas, afim de serem pelo mesmo julgadas e dirimidas (19).

Reputaram os ministros excellente esta organização e exhortaram a companhia a permanecer sempre modesta e serviçal, sem esquecer o facto que alguns delles tinham abandonado as suas mulheres, os seus filhos, os seus haveres, que todos deixaram a patria natal para gozar dos beneficios da prégação do Evangelho; e accrescentaram que, si Deus lhes concedesse a graça de se estabelecerem definitivamente nesse logar, prefiririam antes supportar todos os dissabores e soffrimentos do que esmorecer e recuar do seu posto.

Villegaignon fez sentir aos ministros que, no concernente á Egreja, queria fosse ella conforme a disciplina e ordem da de Genebra, á cuja ampliação vinha dedicando a sua vida e os seus bens, e que não desejava regressar mais á França.

Em ouvindo estas asserções, todos se possuiram de forte animo e encorajados para o cumprimento dos seus deveres, maxmé os pastores para o exercicio do seu ministerio em que se revezariam todas as semanas, pois teriam que prégar uma vez por dia e duas aos domingos (20).

Os officiaes de profissões diversas applicaram-se desde logo, com o maximo enthusiasmo, ás obras da fortificação da ilha, trabalhando mesmo como serventes, circumstancia a que não ligaram a menor importancia tal a confiança que depositavam nas promessas de Villegaignon.

Ambição de Cointac e divergencias sobre a Eucharistia

Ora succedeu que um dos membros da comitiva dos ministros - e eis a causa das perturbações que se seguem, de nome Jean Cointac (21), academico da Sorbonne, de certa illustração, impellído pelo desejo insensato de passar por mais sabio que aquelles, pretendia a Superintendencia do Episcopado, allegando que o logar lhe fôra promettido em França. Foi, porém, embargado na sua estulta aspiração e perdeu a estima de toda a companhia.

Dahi o odio mortal que votava aos ministros, a quem procurava amesquinhar e ridicularizar em todas as controversias e prégações, que epilogava rigorosamente para dar-se ares de entendìdo.

Elle tinha, com effeito, certa apparencia de virtude, era eloquente e persuasivo, quer discorrendo em francez quer em latim. Além disto, adaptava-se ao paladar de cada um, motivo por que Villegaignon o ouvia com particular interesse, prestando attenção ás muitas questões frivolas e nescias que trazia a publico, com o intuito de parecer superior e mais idoneo do que os pastores legitimamente eleitos por suffragio dos irmãos, consoante a fórma da Egreja Primitiva.

Chegado o dia da celebração da Santa Ceia, pois o Conselho resolvera que esta se realizasse uma vez por mez, Cointac, após haver perguntado que lithurgia se pretendia observar, e onde se achavam as vestes sacerdotaes e os vasos sagrados, affirmou, questionando, que, neste sacramento, era conveniente e indispensavel, além de outras coisas, o uso de pão sem fermento e de vinho misturado com agua, porque assim fôra praticado por Justino Martyr, lrineu e Tertuliano.

Os ministros, porém, mostraram a inanidade do argumento e declararam, de modo peremptorio, que nas Escripturas não havia apoio para semelhante innovação e que o dever do crente é manter-se rigorosamente adstricto ao que Jesus Christo fez e ensinou e ao que os seus discipulos nos deixaram por escripto. Em agindo de maneira diversa, será rebelde e jámais bom filho. De resto, lembraram a promessa que lhes fôra feita em França e reiterada em Coligny - a de que viveriam segundo as leis da Reforma existente no logar de onde partiram.

Sem embargo, Villegaignon juntou-se a Cointac, declarando que os antigos eram mais autorizados que os theologos modernos ; e exigio energicamente que tal mistura se fizesse, porquanto Clemente, que convivera com os apostolos, a effectuára. Ponderou-lhes, ainda, que a sua vontade não podia ser contráriada, por isso que elle era o chefe da companhia.

Os pastores e a maioria da assembléa não concordavam que esta pratica fosse obrigatória e entenderam que não deviam mesmo admittil-a para evitar que tal superstição occasionasse, no futuro, sérias perturbações á Egreja, tanto mais quanto Villegaignon e Cointac haviam asseverado que o pão, depois de pronunciadas as palavras de consagração pelo ministro, era santo e que, consequentemente, qualquer parte que do mesmo sobejasse devia ser preciosamente conservada como reliquia sagrada.

Verificou-se isto antes da Santa Ceia e momentaneamente os animos se acalmaram. Ambos os partidos fingiram estar de accordo, afim de que a celebração da Eucharistia não fosse relegada para outra occasião.

Ora Villegaignon e Cointac, á vista da opposição dos ministros sobre este ponto, e sabendo que não podiam constrangel-os a confessarem que era necessario e dependente do sacramento a addição de agua ao vinho, ordenaram secretamente ao dispenseiro que fizesse tal mistura numa proporção rázoavel,

Os prégadores haviam, em seus ultimos sermões, exhortado a que todos se examinassem a si mesmos antes de aproximar-se da Mesa da Communhão, no que foram attendidos. Corpo, porém, Coíntac assumira uma attítude tão estranha que nem parecera um Reformado, e houvesse mesmo referido a alguns que ella dar-lhe-ia certo beneficio em França, um dos ministros pedio-lhe fizesse, em publico, a sua profissão de fé, afim de que se dissipasse a má impressão do seu proceder, ao que annuio immediatamente, ficando todos sobremodo satisfeitos, maximé porque nesse mesmo dia (22) Villegaignon confirmou a sua fé perante toda a congregação.

Entretanto, a autoridade dos ministros e o facto de haverem estes se dirigido a elle sómente irritaram de novo a Cointac, o qual guardou em seu coração um profundo resentimento.

Participaram, pois, da Santa Ceia, Villegaignon, Cointac e os que pareciam dignos de ser a ella admittidos, fazendo todos os mais vivos protestos de que esqueceriam as quizilias havidas.

Dias depois queixou-se Cointac particularmente a Villegaignon da humiliação por que o ministro o fizera passar em plena Egreja. E, despertando as questões que estavam já como adorrnecidas, concertaram ambos um meio de calumniar a instituição desta, comparando os antigos com os modernos, marcando-lhes as differenciações e formando um ritual cujos preceitos deveriam ser observados á risca. Não hesitaram, até, em declarar que a Egreja de Genebra era mal governada e dirigida por herejes, isto porque entendiam que ella, pelos seus ministros, os havia censurado.

Não aceitavam todos os pontos do Papado, em que viam muitos erros. Dos Allemães queriam conservar o que se lhes afigurasse bom, accrescentando e tirando á doutrina segundo lhes ditava a sua fantasia.

Era do seu novo estatuto que o Baptismo se fizesse tambem com sal, oleo e saliva ; que, ficando o pão da Santa Ceia consagrado pelas palavras sacramentaes proferidas pelo ministro, não se devia ïnquirir si o commungante exercia ou não a fé christã ; que era necessario levar as sobras deste pão aos doentes e aos que as solicitassem ; emfim, artigos outros que seria enfadonho descrever.

A imposição determiinou graves discordias, que augmentavam dia a dia.

Este mau começo foi assás favorecido por alguns que lhe não previam as futuras consequencias, pois advertiram a Villegaignon que em França havia rumores de que os Lutheranos estavam fazéndo a travessia em flotilhas e que, portanto, era bem possivel conseguissem persuadir o rei a causar-lhe muitos desgostos, taes como : tomar-lhe os navios, confiscar-lhe os bens e impedir que alguem lhe prestasse soccorro.

Villegaignon reflectio demoradamente sobre isto e, parecendo-lhe que a coisa poderia vir a consummar-se, resolveu por-se ao abrigo de tal eventualidade.

Passados alguns dias realizaram-se dois casamentos, havendo comparecido à cerimonia a maioria da officialidade e dos marujos. Era a semana de Richier e o thema sobre que ia discorrer nesse dia era o baptismo de João.

O orador entrou francamente no assumpto e, com a maior energia, insistio em asseverar que aquelles que não trepidaram em corromper este sacramento com a introducção de sal, oleo e saliva eram imprudentes e falsarios.

A prédica escandalizára immenso a Villegaignon, o qual violentamente encolerizado contradictou ao ministro perante a congregação, sustentando que os que haviam feito taes accrescimos eram melhores que Richier e seus companheiros e que elle, Villegaignon, não estava disposto a abrogar o que se observava ha mais de mil annos para acceitar uma nova cerimonia calvinista. Disse ainda outros insultos e revelou propositos malignos.

Resolveu não mais assistir aos sermões e ás reuniões de oração e, até, de abster-se de comer com os ministros.

Procurou Richier explicar-se para rebater as calumnias que lhe eram assacadas por Villegaignon e Cointac, porém não conseguio que o escutassem.

Então os mais influentes, em extremo desgostosos com estas discordias, entenderam-se com ambas as partes, ponderando-lhes muitas coisas, e persuadiram-n'as a se harmonizarem, o que Villegaignon e Cointac prometteram fazer, comtanto que se coordenassem os pontos em litigio, os quaes deveriam ser submettidos ás Egrejas da França e da Allemanha, para que ellas decidissem a respeito. E, no sentido de chegar-se a um resultado mais seguro, escolheram o mais joven dos ministros, isto é; a Chartier, para ser o portador da consulta; mas a verdade é que isto não passava de um ardil de Villegaignon e Cointac para se desembaraçarem deste prégador, como o almirante o confessou mais tarde.

Quanto a Richier, este ficaria e teria liberdade para prégar, desde que se abstivesse de falar sobre os sacramentos e os demais artigos em questão.

Posto que iniquas e muito prejudiciaes, a congregaçào, todavia, acceitou estas condições por amor à paz e porque esperava fossem inviolavelmente respeitadas as decisões procedentes da França e da Suissa.

Porém Villegaignon e Cointac tinham já o proposito de não acceitar coisa alguma que fosse resolvida por estas Egrejas e o de submetter-se unicamente à Sorbonne de Paris.

Si Villegaignon quizesse logo impedir a prégação do Evangelho, como fez mais tarde, estas contendas não lhe causariam estorvo, por isso que ainda se achavam ancorados no porto os navios que conduziram a comitiva. Reconheceu, entretanto, que, si a recambiasse para a França, em cumprimento á sua promessa, importaria esse acto não só grande deshonra, mas tambem grave inconveniente, porque ver-se-ia quasi sòsinho para enfrentar os Portuguezes e os selvagens.

Com o intuito de encobrir o seu mau designio e de não perder a boa reputação que a sua correspondencia lhe conquistára em França, Villegaignon a todos affirmou que outra coisa não desejava sinão a paz e a união da Egreja e bem assim que assumia o compromisso de esperar a resolução dos pontos controvertidos.

Entrementes, e para ractificar a alliança de perfeita amizade com Villegaignon, pedio e obteve Cointac em casamento a uma joven, natural de Rouen, de quem se enamorára, e a qual herdára alguns bens de um tio que fallecera no Brasil, mas teve que sujeitar-se á condição de que não a deixaria nunca passar privações. Richier foi o celebrante deste casamento na Egreja.

Appropinquou-se o momento da partida dos navios, num dos quaes seguiam Chartier e outros companheiros, como portadores dos artigos em questão e a resposta aos quaes deveria ser enviada seis mezes depois da sua chegada á França. Quando Villegaignon e Cointac viram que estes não podiam mais regressar aos que com elles ficavam em terra) declararam-lhes então terminantemente que não acceitariam nenhuma resolução que não procedesse da Sorbonne ; e, contra o parecer de Cointac, addicionou, ainda, Villegaignon outros artigos, a saber: a transubstanciação, a invocação dos Santos, as orações pelos mortos, o purgatorio e o sacrificio da Missa.

Desde esta data (23) Cointac começou a suspeitar de Villegaignon, por faltar ás suas promessas tantas vezes reiteradas.

O trabalho dos pobres operarios era augmentado na razão directa da fome que experimentavam.

Alguns delles animaram-se a reclamar contra este estado de coisas, mas foram repellidos tão grosseiramente e com tantas ameaças que se não atreveram dahi em diante a formular nenhuma queixa.

Limitaram-se apenas a retirar-se para du Pont e Richier, sob cujo patrocinio haviam ido para a nova terra. Por seu turno Richier e du Pont, vendo-se completamente ludibriados pelo almirante, lastimavam a sua propria condição.

Este desdenhava os sermões de Richier e, caprichoso, exigia que pregasse ora sobre um assumpto ora sobre outro, ao que Richier sempre se recusava.

Assim, Villegaignon absteve-se de comparecer aos serviços divinos, no que foi seguido por alguns da companhia, pois uma grande parte entendia que o que se passára era tão pernicioso e mau que a causa da Religião estava, ali, irremediavelmente perdida.




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[8]Em sua carta a Calvino (Opera, XVI, 417), Villegaignon pretende que a revolta teve origem no facto de haver elle prohibido que as mulheres indígenas entrassem na colonia desacompanhadas de seus maridos – medida que levou vinte e seis mercenarios, voluptatis illecti cupiditate, a conspirarem contra a sua vida, Thevet, em sua Cosmographia, procura lançar sobre os ministros genebrinos a responsabilidade, desta conspiração, quando é certo que ella se realizou antes da chegada dos mesmos, como o prova a propria carta de Villegaignon ( Lery, Prefacio, tomo I, p. 13).

(9) Segundo Barré, em sua carta de 25 de maio de 1556, um dos presos, sentindo-se muito culpado e sem esperanças, portanto, de salvar-se, teve meios de arrastar-se até o muro e atirou-se á agua, afogando-se. Um outro foi estrangulado. Os outros passaram a servir como escravos.

(10) Jean de Lery diz, de maneira positiva (obra citada, cap. I, p. gr), que Villegaignon enviou expressamente um emissario a Genebra, solicitando por este á Egreja e aos ministros dali que o ajudassem e soccorressem, tanto quanto lhes fosse possível, nesta empreza Accrescenta, outrosim, que elle escreveu no mesmo sentido a Coligny;

(11) Pierre Richier, doutor em theologia e ex-frade carmelita, convertera-se ao Protestantismo e, após haver feito seus estudos em Genebra, dirigio-se ao Brasil em 1556, de onde voltou no anno seguinte, sendo então enviado a Rochelle, em cujo lagar organizou a Egreja e morreu a 8 de março de 1580. Ali publicou elle, primeiro em latim (1561) e depois em francez (1562), a Regulação ás loucas fantasias, ás execrareis blasphemias, aos erros e ás mentiras de Nicolas Durand de Villegaignon.

[12]Guillaume Chartier, natural de Vitré – Bretanha, estudou em Genebra e acceitou com muito ardor o cargo de missionario da Reforma da America. Nicolas des Gallars, tendo-o visto e ao seu companheiro na occasião de embarque, escreveu a Calvino ( Opera XVI, 270) que elles partiam eadem alacritate animi quam antea proe se ferebant.

Posteriormente ao insuccesso desta expedição, nada mais se sabe de Chartier senão que foi capellão de Jeanne d’Albret.

(13) «Eis os nomes dos huguenotes que acompanharam du Pont, Richier e Chartier : Pierre Bourdon, Matthieu Verneuil, Jean du Bourdel, André la Fon, Nicolas Denis, Jean Gardien, Martin David, Nicolas Raviquet, Nicolas Carmeau, Jacques Rousseau e eu, Jean de Lery, que me juntei á companhia, assim pelo forte desejo que Deus me dera de contribuir para a sua gloria como pela curiosidade de ver esse novo mundo. Ao todo eramos quatorze e, para a realização de tal viagem, sahimos de Genebra aos 10 de setembro de 1556» (Lery, ed. Gaffarel, tomo I, p. 44).

(14) As Canarias,

(15) Sobre taes actos de pirataria e a viagem, vide Lery, obra citada, tomo I, cap. II, p. 45g, ed. Gaffarel.

(16) Villegaignon installou-se primeiro na ilha Ratier, hoje fortaleza da Lage, passando-se depois para a ilha de Serigipe, a que chamou de Coligny e que tem actualmente o seu nome,

(17) Os Francezes pensavam que a bahia de Guanabara era a foz de um grande rio.

[18]Referencia não ao descobridor Pedro Alvares Cabral mas á expedição exploradora de André Gonçalves, que aportou ao Rio de Janeiro a 1 de janeiro de 1502 e da qual fazia parte o cosmographo florentino Americo Vespucio.

[19]Lery dá o discurso pronunciado neste momento por Villegaignon (1- 87, eci, Gaffarel).

(2O) No concernete ás primeiras impressões dos ministros genebrinos, vide as cartas dos mesmos a Calvino (Opera XVI, 433-440).

(21) Jean Cointac-Lery chama-o Cointa, appellidado Hector (Lery, p. 91).

(22) A Santa Ceia foi celebrada pela primeira vez, em terras da America, no forte de Coligny, em um domingo, 21 de março de 1557 (Lery, ed. citada,1-90). Villegaignon foi o primeiro a apresentar-se à Meza do Senhor e, de joelhos, recebeu o pão e o vinho das mãos do ministro (p. 97), fazendo, então, duas preces em alta voz, que Lery registrou em seu livro (I-90).

(23) 4 de junho de 1557, dia da sahida de Chartier da bahia da Guanabara.

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